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segunda-feira, 11 de abril de 2011

Os mesmos, os outros e o CNJ

Excelente texto publicado no caderno "Direito & Justiça" do Correio Braziliense de hoje (11 de abril de 2011). Perfeito!

Os mesmos, os outros e o CNJ

Ruitemberg Nunes Pereira
Professor e doutorando em Direito Internacional (Uniceub/DF)

Antes do CNJ, o Judiciário nacional representava, em larga medida e poucas (mas reconhecidas) exceções, um arquipélago de pequenas autocracias tradicionais, onde as elites judiciárias se refestelavam, livres de qualquer forma de controle real, em sua juissance privada e obscena, baseada na (i)lógica da colonização, feudalização e privatização dos espaços e funções públicos; da sublimação das possibilidades de participação coletiva; do controle aniquilador e mortificante do pluralismo político crítico e radical; da economia de trocas simbólicas alheias à sociedade e à ordem jurídica; da ineficiência das estruturas orgânicas; das práticas extravagantes e abstrusas de administração.

Neste cenário vítor-nunes-leálico, a forma de vida predominante exaltava os laços tradicionais entre “elites cordiais”, partners da mesma cultura antirrepublicana que institucionalizou e instrumentalizou a ineficiência, a corrupção multifacetada, o nepotismo e as fórmulas medievais da burocracia administrativa, numa partilha feudal da coisa pública, e cujos reflexos ainda se vêem, recônditos ou explícitos, a revelar a própria incapacidade de autorregeneração de um sistema judicial decrépito e imobilizado, mastodôntico, engolfado nas suas ilhas quiméricas, infenso a críticas, mudanças e controles.

Esse velho Judiciário inventou a própria moralidade, uma moral sem ética en petit comité, interiorizada, privatizada, dissimulada e incontrolável, alheia à “realidade do real”. Nesta “sociedade de Cortes”, as posições jurídicas eram pensadas e hierarquizadas em termos de benefícios pessoais partilhados cordialmente, num sistema conservador que combinava a inclusão dos partners e a exclusão dos pariahs como forma de perpetuação.

Nesse ambiente, a menor oposição ou crítica era suficiente para justificar ações violentas (não apenas no sentido hannaharendtiano), não raramente sob a forma perversa da censura e da imposição de anonimato, pois nada mais intolerável aos olhos dos que têm poder (não autoridade) do que o crime de lesa-cortesia, a memorar o cenário machadiano descrito em O país das quimeras.

Invocando Lévinas, pode-se dizer que o Judiciário pré-CNJ só conhecia uma sociedade, a société intime dos Mesmos, das elites judiciárias, dos donos do poder, dos disciplinadores das posições e das ideias, dos controladores da palavra adversa e rebelde, senhores da “última palavra”. Fora dessa sociedade viviam os Outros, uma sociedade desfigurada e sem rostos, que divagava num espaço vazio de identidades anônimas, um mundo exterior de não-lugar dentro e fora dos muros internos da Justiça.

Essa “sociedade anônima” e externa, para deixar de ser anônima, carecia do surgimento do Terceiro, único capacitado para trazer um pouco de justiça à relação entre os Mesmos e os Outros. Como Terceiro, o CNJ materializa as possibilidades éticas dessa société externe e simboliza o implemento de balancings políticos em que os checks jurídicos sempre se mostraram mistificadores e inaptos a corrigir as históricas assimetrias intersubjetivas.

O Terceiro representa o ponto de Arquimedes de onde o novo Judiciário nacional poderá dar o salto rumo à Totalidade e ao Infinito, superando a (i)lógica da ação biopolítica conservadora dos Mesmos. Sem o Terceiro, o destino dos Outros era a sobrevivência como vivos-mortos ou mortos-vivos (na acepção psicanalítica de Slavoj Zizek), excluídos de qualquer possibilidade de ação transformadora. O CNJ é a justiça que vem de fora e, como dizia Lévinas, num ambiente de violência intersubjetiva, a justiça somente pode vir de fora “pela porta”.

O fenômeno social mais marcante a partir da institucionalização do CNJ é precisamente esse poderoso abalo das estruturas da société intime das elites judiciárias nacionais. Apenas essa circunstância já seria suficiente, ainda que em termos simbólicos, para nos permitir sonhar com a emergência de um novo Judiciário, dotado de infinitas possibilidades sociais reais.

Nesse ambiente de renovação que o CNJ simboliza, é possível crer que no arquipélago de autocracias possa surgir uma verdadeira e combativa sociedade externa, desmesmificada, crítica, participativa, intimorata (porque instrumentalizada com os recursos do Terceiro), ávida por democracia, ética, eficiência e transformação social no e por meio do Judiciário, e desejosa de contribuir para que nele se cumpram os objetivos verdadeiros e fundamentais da República, sobretudo o de construir uma sociedade interna e externamente livre, republicanamente solidária e sobretudo justa.

Cabe a esta sociedade externa de Outros impedir a mortificação do Terceiro, que a vivifica, sob pena de continuarmos a assistir a um Judiciário que se move à semelhança do artrópode kafkiano.