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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Artigo - "Entre o direito ao duplo grau e a efetividade da jurisdição penal"

Segue abaixo artigo de autoria do Prof. Rogerio Schietti Machado Cruz, publicado na Carta Forense (disponível originalmente aqui: http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=6432)

Entre o direito ao duplo grau e a efetividade da jurisdição penal


A existência do duplo grau de jurisdição se justifica em qualquer Estado de Direito, principalmente como uma garantia do acusado no processo penal. Serve, outrossim, como mecanismo para assegurar maior controle de qualidade às decisões jurisdicionais, que se submetem à revisão por juízes de instância superior, ante a crença de que a experiência e o tirocínio jurídico dos juízes que compõem o segundo grau de jurisdição lhes conferem melhores condições de analisar o processo, sem as paixões e as pressões que costumam ocorrer na primeira instância.

É óbvio que o erro judiciário não é totalmente evitável, mas a submissão de uma causa criminal ao crivo de mais de um órgão julgador certamente minimiza o risco de que ele ocorra. De mais a mais, a própria configuração de um Estado de Direito Democrático não se compatibiliza com a idéia de um processo penal regido pelo juízo único, avesso ao controle interno pelas partes. Os mecanismos de impugnação dos atos jurisdicionais soam, portanto, como natural consequência dos princípios democráticos que informam o sistema jurídico de uma nação, assentada sobre os valores da justiça e da dignidade da pessoa humana, incompatíveis, para exemplificar, com o que dispunha, no Império, a Lei nº 4, de 10 de junho de 1865, que cuidava das penas previstas para os escravos que cometessem crimes contra seus senhores. Em seu art. 4º, estabelecia-se que a sentença, sendo condenatória (inclusive à pena de morte), seria executada "sem recurso algum".

Releva destacar que os textos internacionais que cuidam de direitos de acusados em processos criminais (como é o caso do Pacto de San Jose, Decreto 678/92, e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de Nova York, Decreto nº 592/92) prevêem, explicitamente, o direito ao recurso tão somente do acusado, nada dizendo quanto a homólogo direito do órgão de acusação.

Por sua vez, nos países pertencentes ao common law - Estados Unidos, Reino Unido e toda a Commonwealth - existem restrições, com maior ou menor amplitude, ao direito de recorrer por parte do órgão de acusação, por entender-se que a submissão do acusado ao julgamento de outra instância interfere na garantia contra dupla persecução penal (ver análise mais aprofundada em nosso A proibição de dupla persecução penal. Lumen Juris).

Críticas, por sua vez, são formuladas à existência do duplo grau e a principal delas refere-se ao alongamento que o uso dos meios de impugnação acarreta na prestação jurisdicional. De fato, não bastasse o longo tempo que se costuma despender para encerrar-se uma causa em primeiro grau, o uso dos recursos previstos nas leis torna o resultado dos processos excessivamente demorado, máxime em um sistema, como o brasileiro, em que a parte "bem" assistida tecnicamente pode criar um emaranhado de questões jurídicas tão complexo que lhe permita interpor sucessivos recursos, com propósito meramente protelatório, sempre contando com a morosidade da justiça.

Com efeito, contabilizando todas as hipóteses de impugnação previstas em nossa legislação processual penal, inclusive as que se apresentam como ações ou incidentes processuais, chegamos ao assustador número de 18 (dezoito) meios de pedir a revisão de um ato jurisdicional. São eles: apelação, recurso em sentido estrito, embargos de declaração, embargos infringentes e de nulidade, carta testemunhável, agravo regimental, agravo à execução, correição parcial, recurso especial, recurso extraordinário, reclamação, embargos divergentes, conflito de competência, exceções (de incompetência, de litispendência ou coisa julgada, de impedimento ou suspeição), habeas corpus, recurso ordinário, mandado de segurança e revisão criminal.

Recorde-se que alguns desses meios impugnativos (como é o caso do Habeas Corpus, da apelação no Tribunal do Júri e dos Embargos de Declaração) podem ser manejados por diversas vezes, em um mesmo processo, pelo mesmo réu, sempre ao argumento de que se trata de legítimo exercício da ampla defesa, ainda que, eventualmente, se perceba o nítido propósito de procrastinar o resultado final do processo.

Não é preciso, portanto, muita inteligência para afirmar que o nosso sistema normativo contribui, significativamente, para essa profusão de recursos. Seria, então, absolutamente necessário proceder-se a uma radical intervenção legislativa no Código de Processo Penal e nos regimentos internos dos tribunais - sobretudo os superiores - para reverter esse quadro. O PLS 156/09, em trâmite no Congresso Nacional, reconhece tal diagnóstico, afirmando, na sua Exposição de Motivos, que "... frequentemente se tem atribuído ao número excessivo de recursos a demora da prestação jurisdicional, de modo a justificar a necessidade da adoção de um critério de recorribilidade mínima das decisões judiciais" (grifamos). No entanto, não bastam, a esse propósito, mudanças superficiais, como as que vêm sendo realizadas nos últimos anos, ou as que estão sendo propostas no referido projeto, mesmo reconhecendo-se que "[a] disciplina legal dos recursos deve buscar, por certo, a celeridade necessária à produção da resposta penal em tempo razoável e socialmente útil e à tutela dos direitos fundamentais dos indiciados ou imputados autores de infrações penais." (grifamos)

Em verdade, é preciso um pouco mais de coragem para enfrentar o problema com soluções mais efetivas e ousadas, que não se limitem a tão só reduzir ou condensar prazos e a alterar o procedimento dos recursos criminais. É indispensável que o legislador e, antes, os responsáveis pela formulação das propostas legislativas, abandonem o hábito de tomar o código vigente como referência (basta um olhar sobre os projetos de reforma do CPP para se perceber que a redação dos artigos segue, em boa parte, o texto literal do código em vigor). É fundamental partir de algo novo, de modo a propor-se um código que rompa com uma tradição não mais compatível com a velocidade da vida moderna e com os anseios por uma justiça menos burocratizada e encastelada em modelos anacrônicos e excessivamente formais.

Vejamos, como exemplo, o que ocorre com o recurso de Embargos Infringentes e de Nulidade, que, na prática, dá ao réu o direito não ao duplo, mas ao triplo grau de jurisdição, na suposição de que o terceiro julgamento será o que traduzirá melhor justiça. Tudo isso em um sistema que, jogando no ralo o princípio da oralidade - com seus consectários lógicos, entre os quais o da imediação entre juiz e partes - permite ao órgão jurisdicional de segundo grau revolver toda a prova que foi produzida sob o contraditório e com a presença das partes e de modo público, perante o juiz natural da causa, para encontrar decisão totalmente diferente, quanto à matéria de fato, da obtida em primeiro grau.

O PLS 156/09, nesse particular, avança substancialmente, pois admite tal impugnação apenas quando o julgamento não unânime da apelação houver resultado na reforma da sentença de mérito, em prejuízo do réu, o que, efetivamente, lhe assegura o direito ao duplo grau de jurisdição. Sem embargo, há quem considere semelhante proposta um retrocesso, postulando que se adote redação, já constante de outro projeto anteriormente apresentado ao Congresso Nacional (PL 4.206/01), que chegava ao cúmulo de criar uma nova modalidade de recurso ex officio, visto que determinava aos desembargadores submeter o acórdão majoritário, desfavorável ao réu (mesmo que já houvesse sido condenado em primeiro grau), e sem necessidade de provocação, a novo julgamento perante a Câmara Criminal.

Por outro lado, e em que pesem os declarados objetivos e os inegáveis avanços do PLS 156/09, que propõe um código moderno e, mais ainda, um verdadeiro sistema de processo penal (pois hoje não o temos), as demais sugestões de alteração do capítulo referente aos recursos são, à evidência, incapazes de modificar, de maneira significativa, o quadro desolador que enfrentamos hoje.

Aliás, a agravar esse quadro, e a despeito da afirmada tentativa da Comissão de Juristas de minorar o problema, o Habeas Corpus continuará a assumir contornos cada vez mais flexíveis, na variada casuística forense, sempre sob a invocação, ainda que remota e indireta, de risco à liberdade do investigado ou do réu.

De ação voltada à proteção da liberdade, por coação ilegal, atual ou iminente, o Habeas Corpus, como dito na Exposição de Motivos do referido projeto, transformou-se em "sub-rogado universal das impugnações recursais", verdadeira panacéia de todos os males do processo penal, pretensão que, na prática, amiúde o transforma em causa direta do estrangulamento da jurisdição penal, crescentemente acionada por meio do writ para resolver qualquer alegação, ainda que inconsistente, de violação à liberdade. Para exemplificar, chegou-se ao ponto de dar guarida a uma postulação (sim, o o STJ concedeu a ordem solicitada) voltada a retirar da denúncia a foto digital do réu, o qual já estava, saliente-se, condenado, definitivamente, por crime de roubo qualificado (o que analisamos melhor no seguinte endereço virtual: http://www.metajus.com.br/opinioes/opiniao42.html). Ainda para mensurar o alcance que se tem dado a tal ação constitucional, por força de crescente tolerância dos tribunais, a defesa chegou a postular, nesse mesmo writ, que se extirpasse, da petição inicial, a expressão "ação penal condenatória" (!).

A manter-se essa tolerância com o uso abusivo do Habeas Corpus, os tribunais superiores cada vez mais se afastarão de outras competências outorgadas pelo Constituinte de 1988, convertendo-se, virtualmente, em terceira ou quarta instância para a rediscussão de temas que nem sempre, é bom enfatizar, passaram pelo crivo dos tribunais estaduais e federais, mas apenas de um ou outro de seus membros.

A propósito, não custa lembrar que o Supremo Tribunal Federal editou Súmula (verbete 691) exatamente para prestigiar as decisões colegiadas dos tribunais e obviar a costumeira praxe de advogados e defensores que pulam as naturais etapas na luta, posto que legítima, pelos alegados direitos dos acusados, impetrando sucessivos Habeas Corpus, desde a primeira instância, sem ao menos aguardar que essas ações impugnativas sejam julgadas pelos órgãos colegiados da jurisdição ordinária. Sem embargo, é o próprio STF, por alguns de seus magistrados, quem por vezes desconsidera o rigor de sua súmula, cassando decisões proferidas por ministros do STJ, antes do julgamento definitivo do Habeas Corpus por aquela Corte. E é por isso também que já se propôs mesmo a revogação da Súmula 691 (ex. HBC 85.185-1-SP), tamanha a dificuldade de ser ela respeitada no STF.

O Ministro Og Fernandes, do Superior Tribunal de Justiça, em artigo publicado no Boletim de agosto do IBBCrim (O Habeas Corpus no Projeto do CPP), assinalou que, em 21 anos de existência do STJ, foram distribuídos 175 mil habeas corpus. Em 2008, 26.973 deram entrada naquela Corte HCs. Em 2009, outros 32.549 e no primeiro semestre de 2010, foram 17.642 HCs impetrados, cerca de 97 casos por dia.

Nino Oliveira Toldo, após enfatizar que o Supremo Tribunal Federal, de 2008 a 30 de abril de 2010, julgou 13.509 Habeas Corpus (tendo concedido, nesse período, apenas 898), concluiu que "se queremos um bom processo penal, temos que pensar num sistema racional de recursos que dê efetividade ao processo, porém balizado na ampla defesa, e no qual o Habeas Corpus volte a ser uma ação de uso restrito para as hipóteses em que se busque proteger, efetivamente, a liberdade de locomoção, porque "não é razoável que se dê tanta elasticidade ao habeas corpus para levar aos tribunais questões que, por princípio, deveriam ser reexaminadas, quando possível, em grau de recurso." (O novo CPP: recursos e Habeas Corpus. Boletim IBCcrim, agosto/10)

Talvez, então, pudéssemos pensar em algumas alternativas que, em minha modesta opinião, trariam ao nosso sistema processual penal uma dose razoável de efetividade, sem abdicar das conquistas civilizatórias incorporadas ao nosso direito positivo.

Já houve avanços quando se extinguiu o Protesto por Novo Júri na reforma de 2008, muito embora algumas vozes, mais apegadas às tradições e à conservação de dogmas jurídicos, tenham objetado fervorosamente, com simplórios e triviais argumentos de que se suprimiu uma garantia do acusado, que a ampla defesa foi sacrificada, que a liberdade humana sofreu um revés e così via. O PLS 156/09, a seu turno, tem o mérito de extinguir a anômala figura do recurso ex officio, propor a eliminação da Carta Testemunhável, o impedimento a que se utilizem os Embargos de Declaração por mais de uma vez, bem assim a já aludida limitação do recurso de Embargos Infringentes.

A despeito do avanço dessas propostas, seria imprescindível que também os tribunais superiores enxugassem os meios impugnativos regimentais. A merecer igual reflexão seria a possibilidade de redefinição constitucional do cabimento dos recursos extraordinário e especial, no âmbito criminal, os quais, mesmo com tantas limitações materiais e formais, acabam por favorecer o estrangulamento dos ofícios judiciais dos tribunais superiores, onde os recursos costumam ser julgados por atacado, amiúde por meio de votos redigidos por servidores que, mesmo se qualificados intelectualmente, não poderiam ocupar a função jurisdicional que é privativa de magistrados.

Se queremos, por conseguinte, dispor de uma jurisdição criminal, máxime na atividade recursal, minimamente funcional, que cumpra seu papel de prestar jurisdição em um tempo razoável, por juízes que tenham real possibilidade de examinar, sem delegação de funções, os processos que lhes chegam às mãos para julgar, preservando-se os direitos das partes e, nomeadamente, o direito do acusado ao duplo grau de jurisdição, urge a adoção de mudanças normativas, a serem, evidentemente, debatidas, tanto por acadêmicos quanto, principalmente, por profissionais do Direito, sem preconceitos, com desapego e, acima de tudo, com honestidade intelectual e senso crítico, requisitos indispensáveis para a evolução de qualquer ciência, inclusive a Ciência do Direito.


Jornal Carta Forense, terça-feira, 4 de janeiro de 2011

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Portaria que regulamenta uso da força

No dia 31 de dezembro de 2010, foi publicada a Portaria interministerial 4.226 que "estabelece diretrizes sobre o uso da força pelos agentes de segurança pública".
Vale a pena conferir:
 
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA

GABINETE DO MINISTRO

PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 4.226, DE 31 DE DEZEMBRO DE 2010

DOU de 03/01/2011 (nº 1, Seção 1, pág. 27)

Estabelece Diretrizes sobre o Uso da Força pelos Agentes de Segurança Pública.

O MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA e o MINISTRO DE ESTADO CHEFE DA SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhes conferem os incisos I e II, do parágrafo único, do art. 87, da Constituição Federal e,

considerando que a concepção do direito à segurança pública com cidadania demanda a sedimentação de políticas públicas de segurança pautadas no respeito aos direitos humanos;

considerando o disposto no Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 34/169, de 17 de dezembro de 1979, nos Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinqüentes, realizado em Havana, Cuba, de 27 de Agosto a 7 de setembro de 1999, nos Princípios orientadores para a Aplicação Efetiva do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotados pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas na sua resolução 1989/61, de 24 de maio de 1989 e na Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em sua XL Sessão, realizada em Nova York em 10 de dezembro de 1984 e promulgada pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991;

considerando a necessidade de orientação e padronização dos procedimentos da atuação dos agentes de segurança pública aos princípios internacionais sobre o uso da força;

considerando o objetivo de reduzir paulatinamente os índices de letalidade resultantes de ações envolvendo agentes de segurança pública; e,

considerando as conclusões do Grupo de Trabalho, criado para elaborar proposta de Diretrizes sobre Uso da Força, composto por representantes das Polícias Federais, Estaduais e Guardas Municipais, bem como com representantes da sociedade civil, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e do Ministério da Justiça, resolvem:

Art. 1º - Ficam estabelecidas Diretrizes sobre o Uso da Força pelos Agentes de Segurança Pública, na forma do Anexo I desta Portaria.

Parágrafo único - Aplicam-se às Diretrizes estabelecidas no Anexo I, as definições constantes no Anexo II desta Portaria.

Art. 2º - A observância das diretrizes mencionadas no artigo anterior passa a ser obrigatória pelo Departamento de Polícia Federal, pelo Departamento de Polícia Rodoviária Federal, pelo Departamento Penitenciário Nacional e pela Força Nacional de Segurança Pública.

§ 1º - As unidades citadas no caput deste artigo terão 90 dias, contados a partir da publicação desta portaria, para adequar seus procedimentos operacionais e seu processo de formação e treinamento às diretrizes supramencionadas.

§ 2º - As unidades citadas no caput deste artigo terão 60 dias, contados a partir da publicação desta portaria, para fixar a normatização mencionada na diretriz nº 9 e para criar a comissão mencionada na diretriz nº 23.

§ 3º - As unidades citadas no caput deste artigo terão 60 dias, contados a partir da publicação desta portaria, para instituir Comissão responsável por avaliar sua situação interna em relação às diretrizes não mencionadas nos parágrafos anteriores e propor medidas para assegurar as adequações necessárias.

Art. 3º - A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e o Ministério da Justiça estabelecerão mecanismos para estimular e monitorar iniciativas que visem à implementação de ações para efetivação das diretrizes tratadas nesta portaria pelos entes federados, respeitada a repartição de competências prevista no art. 144 da Constituição Federal.

Art. 4º - A Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça levará em consideração a observância das diretrizes tratadas nesta portaria no repasse de recursos aos entes federados.

Art. 5º - Esta portaria entra em vigor na data de sua publicação.

LUIZ PAULO BARRETO - Ministro de Estado da Justiça

PAULO DE TARSO VANNUCHI - Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República

ANEXO I

DIRETRIZES SOBRE O USO DA FORÇA E ARMAS DE FOGO PELOS AGENTES DE SEGURANÇA PÚBLICA

1. O uso da força pelos agentes de segurança pública deverá se pautar nos documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e deverá considerar, primordialmente:

a. ao Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 34/169, de 17 de dezembro de 1979;

b. os Princípios orientadores para a Aplicação Efetiva do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotados pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas na sua resolução 1989/61, de 24 de maio de 1989;

c - os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinqüentes, realizado em Havana, Cuba, de 27 de Agosto a 7 de setembro de 1999;

d - a Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em sua XL Sessão, realizada em Nova York em 10 de dezembro de 1984 e promulgada pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991.

2. O uso da força por agentes de segurança pública deverá obedecer aos princípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência.

3. Os agentes de segurança pública não deverão disparar armas de fogo contra pessoas, exceto em casos de legítima defesa própria ou de terceiro contra perigo iminente de morte ou lesão grave.

4. Não é legítimo o uso de armas de fogo contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que, mesmo na posse de algum tipo de arma, não represente risco imediato de morte ou de lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros.

5. Não é legítimo o uso de armas de fogo contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, a não ser que o ato represente um risco imediato de morte ou lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros.

6. Os chamados "disparos de advertência" não são considerados prática aceitável, por não atenderem aos princípios elencados na Diretriz nº 2 e em razão da imprevisibilidade de seus efeitos.

7. O ato de apontar arma de fogo contra pessoas durante os procedimentos de abordagem não deverá ser uma prática rotineira e indiscriminada.

8. Todo agente de segurança pública que, em razão da sua função, possa vir a se envolver em situações de uso da força, deverá portar no mínimo 2 (dois) instrumentos de menor potencial ofensivo e equipamentos de proteção necessários à atuação específica, independentemente de portar ou não arma de fogo.

9. Os órgãos de segurança pública deverão editar atos normativos disciplinando o uso da força por seus agentes, definindo objetivamente:

a. os tipos de instrumentos e técnicas autorizadas;

b. as circunstâncias técnicas adequadas à sua utilização, ao ambiente/entorno e ao risco potencial a terceiros não envolvidos no evento;

c - o conteúdo e a carga horária mínima para habilitação e atualização periódica ao uso de cada tipo de instrumento;

d - a proibição de uso de armas de fogo e munições que provoquem lesões desnecessárias e risco injustificado; e

e. o controle sobre a guarda e utilização de armas e munições pelo agente de segurança pública.

10. Quando o uso da força causar lesão ou morte de pessoa( s), o agente de segurança pública envolvido deverá realizar as seguintes ações:

a. facilitar a prestação de socorro ou assistência médica aos feridos;

b. promover a correta preservação do local da ocorrência;

c - comunicar o fato ao seu superior imediato e à autoridade competente; e

d - preencher o relatório individual correspondente sobre o uso da força, disciplinado na Diretriz nº 22.

11. Quando o uso da força causar lesão ou morte de pessoa( s), o órgão de segurança pública deverá realizar as seguintes ações:

a.facilitar a assistência e/ou auxílio médico dos feridos;

b.recolher e identificar as armas e munições de todos os envolvidos, vinculando-as aos seus respectivos portadores no momento da ocorrência;

c - solicitar perícia criminalística para o exame de local e objetos bem como exames médico-legais;

d - comunicar os fatos aos familiares ou amigos da(s) pessoa( s) ferida(s) ou morta(s);

e.iniciar, por meio da Corregedoria da instituição, ou órgão equivalente, investigação imediata dos fatos e circunstâncias do emprego da força;

f.promover a assistência médica às pessoas feridas em decorrência da intervenção, incluindo atenção às possíveis seqüelas;

g.promover o devido acompanhamento psicológico aos agentes de segurança pública envolvidos, permitindo-lhes superar ou minimizar os efeitos decorrentes do fato ocorrido; e

h.afastar temporariamente do serviço operacional, para avaliação psicológica e redução do estresse, os agentes de segurança pública envolvidos diretamente em ocorrências com resultado letal.

12. Os critérios de recrutamento e seleção para os agentes de segurança pública deverão levar em consideração o perfil psicológico necessário para lidar com situações de estresse e uso da força e arma de fogo.

13. Os processos seletivos para ingresso nas instituições de segurança pública e os cursos de formação e especialização dos agentes de segurança pública devem incluir conteúdos relativos a direitos humanos.

14. As atividades de treinamento fazem parte do trabalho rotineiro do agente de segurança pública e não deverão ser realizadas em seu horário de folga, de maneira a serem preservados os períodos de descanso, lazer e convivência sócio-familiar.

15. A seleção de instrutores para ministrarem aula em qualquer assunto que englobe o uso da força deverá levar em conta análise rigorosa de seu currículo formal e tempo de serviço, áreas de atuação, experiências anteriores em atividades fim, registros funcionais, formação em direitos humanos e nivelamento em ensino. Os instrutores deverão ser submetidos à aferição de conhecimentos teóricos e práticos e sua atuação deve ser avaliada.

16. Deverão ser elaborados procedimentos de habilitação para o uso de cada tipo de arma de fogo e instrumento de menor potencial ofensivo que incluam avaliação técnica, psicológica, física e treinamento específico, com previsão de revisão periódica mínima.

17. Nenhum agente de segurança pública deverá portar armas de fogo ou instrumento de menor potencial ofensivo para o qual não esteja devidamente habilitado e sempre que um novo tipo de arma ou instrumento de menor potencial ofensivo for introduzido na instituição deverá ser estabelecido um módulo de treinamento específico com vistas à habilitação do agente.

18. A renovação da habilitação para uso de armas de fogo em serviço deve ser feita com periodicidade mínima de 1 (um) ano.

19. Deverá ser estimulado e priorizado, sempre que possível, o uso de técnicas e instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública, de acordo com a especificidade da função operacional e sem se restringir às unidades especializadas.

20. Deverão ser incluídos nos currículos dos cursos de formação e programas de educação continuada conteúdos sobre técnicas e instrumentos de menor potencial ofensivo.

21. As armas de menor potencial ofensivo deverão ser separadas e identificadas de forma diferenciada, conforme a necessidade operacional.

22. O uso de técnicas de menor potencial ofensivo deve ser constantemente avaliado.

23. Os órgãos de segurança pública deverão criar comissões internas de controle e acompanhamento da letalidade, com o objetivo de monitorar o uso efetivo da força pelos seus agentes.

24. Os agentes de segurança pública deverão preencher um relatório individual todas as vezes que dispararem arma de fogo e/ou fizerem uso de instrumentos de menor potencial ofensivo, ocasionando lesões ou mortes. O relatório deverá ser encaminhado à comissão interna mencionada na Diretriz nº 23 e deverá conter no mínimo as seguintes informações:

a.circunstâncias e justificativa que levaram o uso da força ou de arma de fogo por parte do agente de segurança pública;

b.medidas adotadas antes de efetuar os disparos/usar instrumentos de menor potencial ofensivo, ou as razões pelas quais elas não puderam ser contempladas;

c - tipo de arma e de munição, quantidade de disparos efetuados, distância e pessoa contra a qual foi disparada a arma;

d - instrumento(s) de menor potencial ofensivo utilizado(s), especificando a freqüência, a distância e a pessoa contra a qual foi utilizado o instrumento;

e. quantidade de agentes de segurança pública feridos ou mortos na ocorrência, meio e natureza da lesão;

f. quantidade de feridos e/ou mortos atingidos pelos disparos efetuados pelo(s) agente(s) de segurança pública;

g. número de feridos e/ou mortos atingidos pelos instrumentos de menor potencial ofensivo utilizados pelo(s) agente(s) de segurança pública;

h. número total de feridos e/ou mortos durante a missão;

i - quantidade de projéteis disparados que atingiram pessoas e as respectivas regiões corporais atingidas;

j. quantidade de pessoas atingidas pelos instrumentos de menor potencial ofensivo e as respectivas regiões corporais atingidas;

k. ações realizadas para facilitar a assistência e/ou auxílio médico, quando for o caso; e

l - se houve preservação do local e, em caso negativo, apresentar justificativa.

25. Os órgãos de segurança pública deverão, observada a legislação pertinente, oferecer possibilidades de reabilitação e reintegração ao trabalho aos agentes de segurança pública que adquirirem deficiência física em decorrência do desempenho de suas atividades.

ANEXO II

GLOSSÁRIO

Armas de menor potencial ofensivo: Armas projetadas e/ou empregadas, especificamente, com a finalidade de conter, debilitar ou incapacitar temporariamente pessoas, preservando vidas e minimizando danos à sua integridade.

Equipamentos de menor potencial ofensivo: Todos os artefatos, excluindo armas e munições, desenvolvidos e empregados com a finalidade de conter, debilitar ou incapacitar temporariamente pessoas, para preservar vidas e minimizar danos à sua integridade.

Equipamentos de proteção: Todo dispositivo ou produto, de uso individual (EPI) ou coletivo (EPC) destinado a redução de riscos à integridade física ou à vida dos agentes de segurança pública.

Força: Intervenção coercitiva imposta à pessoa ou grupo de pessoas por parte do agente de segurança pública com a finalidade de preservar a ordem pública e a lei.

Instrumentos de menor potencial ofensivo: Conjunto de armas, munições e equipamentos desenvolvidos com a finalidade de preservar vidas e minimizar danos à integridade das pessoas.

Munições de menor potencial ofensivo: Munições projetadas e empregadas, especificamente, para conter, debilitar ou incapacitar temporariamente pessoas, preservando vidas e minimizando danos a integridade das pessoas envolvidas.

Nível do Uso da Força: Intensidade da força escolhida pelo agente de segurança pública em resposta a uma ameaça real ou potencial.

Princípio da Conveniência: A força não poderá ser empregada quando, em função do contexto, possa ocasionar danos de maior relevância do que os objetivos legais pretendidos.

Princípio da Legalidade: Os agentes de segurança pública só poderão utilizar a força para a consecução de um objetivo legal e nos estritos limites da lei.

Princípio da Moderação: O emprego da força pelos agentes de segurança pública deve sempre que possível, além de proporcional, ser moderado, visando sempre reduzir o emprego da força.

Princípio da Necessidade: Determinado nível de força só pode ser empregado quando níveis de menor intensidade não forem suficientes para atingir os objetivos legais pretendidos.

Princípio da Proporcionalidade: O nível da força utilizado deve sempre ser compatível com a gravidade da ameaça representada pela ação do opositor e com os objetivos pretendidos pelo agente de segurança pública.

Técnicas de menor potencial ofensivo: Conjunto de procedimentos empregados em intervenções que demandem o uso da força, através do uso de instrumentos de menor potencial ofensivo, com intenção de preservar vidas e minimizar danos à integridade das pessoas.

Uso Diferenciado da Força: Seleção apropriada do nível de uso da força em resposta a uma ameaça real ou potencial visando limitar o recurso a meios que possam causar ferimentos ou mortes.